Episodios

  • Sopranista brasileiro vai cantar em concerto do 14 de julho, um dos mais importantes da França
    Jul 12 2025

    O sopranista Bruno de Sá é dono de uma voz extraordinária e uma das figuras de maior destaque da cena lírica europeia contemporânea. Ele foi convidado para cantar no Concerto de Paris, um dos principais eventos de música clássica do mundo, que acontece desde 2012 no dia da festa nacional da França, o 14 de julho, aos pés da Torre Eiffel.

    Apesar de já ter cantado nos palcos mais célebres do mundo, o cantor brasileiro radicado em Berlim, na Alemanha, não esconde a emoção de participar do Concerto de Paris, que antecede a tradicional queima de fogos do dia 14 de julho, interpretando Bachianas Brasileiras n.5, de Villa Lobos.

    "É uma mistura de nervosismo, de ansiedade e, ao mesmo tempo, um senso de responsabilidade gigante", diz o sopranista que interpreta principalmente um repertório em italiano. "Cantar em português é muito raro para mim. Eu não canto tanto quanto eu gostaria. Vir com essa peça que é tão emblemática, nesse lugar icônico e em português, eu acho que vou ter que me segurar para não chorar", afirma.

    O contraste com seus primeiros passos na França é grande, relembra, contando os "perrengues" que passou na capital francesa, há dez anos. "A primeira vez que estive em Paris foi em 2015, enquanto estudante. Vim para cá falando um francês truncado, contando moeda para comprar um sanduíche, para conseguir fazer audição, e aí cheguei e a pianista não tinha ido tocar na audição. Foi um caos", relembra rindo."E aí, de repente, você se vê sendo um dos artistas convidados, junto com outros tantos artistas mundialmente reconhecidos", compara.

    O Concerto de Paris, um dos mais importantes eventos de música clássica do mundo, reúne dezenas de milhares de pessoas no Campo de Marte, aos pés da Torre Eiffel, e é transmitido ao vivo pela tevê e pela rádio em mais de 20 países. A 13ª edição conta com a participação das sopranos russa Aida Garifulina e francesa Julie Fuchs, da violinista sul-coreana Bomsori Kim, do pianista, também da Coreia do Sul, Saehyun Kim, entre outros artistas, acompanhados pela Orquestra Nacional da França e do Coro da Rádio França.

    "Eu realmente espero que, ao subir naquele palco, eu não esteja só, mas que seja toda uma nação", diz. "Porque acho que é um pouco esse o sentimento, de representar minha nação, de ser brasileiro, cantar em português e representar o Brasil. Porque ser brasileiro é motivo de orgulho", afirma.

    Voz fora do comum

    Bruno tem uma voz fora do comum. Ele é sopranista, um homem que canta soprano, voz tradicionalmente feminina. "Eu não sou contratenor, nem um barítono, ou seja, a minha voz, por obra divina, problemas hormonais ou caráter genético, não sei definir qual é a porcentagem de tudo isso, de alguma maneira, manteve o registro infantil, com um corpo de um homem adulto", explica.

    Grande parte do repertório do cantor se concentra no barroco, mas ele já interpretou obras de outros períodos.

    "Atualmente ainda existe quase que um condicionamento das pessoas acharem que se você é um sopranista, ou um contratenor, então você tem que cantar somente música barroca. E isso é um pouco da bandeira que eu venho tentando levantar", diz defendendo a ideia de que o artista não deve se fechar em ideias limitantes.

    "Eu acredito que a gente não deve limitar a produção artística de nenhum artista. No final das contas, eu sou um soprano. Qual seria o repertório de um soprano? Então é nesse lugar, dentro da minha trajetória e também de jornada, que fui abrindo caminho", diz Bruno, o primeiro homem soprano a cantar Wagner e também Bachianas Brasileiras.

    Mas ele admite que, no mundo conservador da ópera, ter uma voz fora da norma não é fácil.

    "Foi difícil e continua sendo difícil", diz. "Meu sonho, honestamente, é chegar um dia onde a gente seja selecionado para um casting, não porque sou a excentricidade, não porque eu sou um homem que tem uma voz aguda. Eu acho que o meu grande sonho seria ser selecionado para uma produção, seja barroca, contemporânea, independente de qual seja o personagem, pelo que eu, enquanto artista, posso comunicar", diz.

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  • Emílio Kalil: “Prazo apertado foi maior desafio para produzir Temporada França Brasil 2025"
    Jul 11 2025

    Sob o sol festivo do sul da França, o Brasil é destaque na programação dos Encontros de Arles, um dos maiores eventos internacionais em torno da fotografia. O país está presente em quatro grandes exposições oficiais, além de muitas manifestações no circuito OFF. O contexto é o da Temporada França Brasil 2025. Emilio Kalil, comissário geral da programação brasileira, conversou com a RFI em Arles.

    Patrícia Moribe, enviada especial a Arles

    No total são cerca de 300 exposições e eventos em toda a França. A programação foi concebida por Kalil em torno de três eixos fundamentais: o meio ambiente, a diversidade e a democracia. Ele explica que os temas foram definidos em 2023 pelos presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Emmanuel Macron, servindo como guias para a construção da temporada. Além desses, um quarto eixo crucial para a curadoria brasileira é a relação entre a França, o Brasil e a África, uma conexão que Kalil considera "muito forte" e essencial na programação.

    “É uma honra muito grande, mas uma complicação também maior ainda, porque você precisa representar um país enorme, complexo, como o nosso, como o Brasil, e fazer dele uma mostra que o francês, já que é na França, tenha uma ideia diferente, nova e desconhecida desse país que a gente sabe que é continental, que é enorme, que tem uma diversidade, que começa em Belém, terminando no Chuí”, explica Kalil.

    Além da magnitude da missão, a equipe de Emilio Kalil enfrentou um cronograma "extremamente apertado", tendo "quase um ano" ou "menos de um ano" para montar toda a programação, o que Kalil descreveu como "quase um milagre". Os principais desafios incluíram a necessidade de pesquisar e selecionar o conteúdo em um período muito curto, acoplado à dificuldade de encontrar instituições na França dispostas a receber as exposições e eventos em cima da hora, já que a maioria já tinha suas agendas fechadas. A questão orçamentária foi outro "imenso" desafio, com o financiamento sendo definido de "última hora" e sofrendo cortes tanto no Brasil, quanto na França.

    Contatos na França

    Para contornar esses obstáculos, Kalil mobilizou sua extensa rede de contatos e anos de trabalho com a França, especialmente nas artes cênicas, o que ajudou a "abrir portas" e gerar uma "cumplicidade enorme" entre franceses e brasileiros. Essa rede de contatos foi fundamental para conseguir que instituições de primeira linha na França acolhessem a programação, incluindo o Museu Picasso, o Museu do Quai Branly, o Museu d'Orsay, o Centro Pompidou, o Carreau du Temple em Nîmes e outros enderenços de prestígio. A temporada também se estende a outras cidades como Nantes, Lille e Lyon.

    A curadoria de Kalil priorizou o conteúdo cultural e educacional, promovendo debates sobre democracia e desinformação, debatendo a questão indígena, e abordando a identidade negra. Em Arles, por exemplo, estão presentes a histórica fotografia modernista forjada a partir de São Paulo, passando por retratistas populares de uma comunidade perto de Belo Horizonte, artistas emergentes e um mergulho místico no candomblé por meio de um jovem fotógrafo neto de mãe de santo.

    Projetos cruzados

    Além disso, a temporada se destaca pelos mais de 40 "projetos cruzados", desenvolvidos em colaboração entre o comissário brasileiro - Emilio Kalil - e a francesa - Anne Louyot. Esses projetos são iniciados no Brasil e depois seguem para a França, ou vice-versa, representando um esforço conjunto e um trabalho "a quatro mãos", explica Kalil.

    O comissário é também o diretor da Fundação Iberê em Porto Alegre, para onde retornará de forma mais assídua após a temporada. Ele planeja levar para a instituição dois importantes segmentos desta temporada: uma mostra do artista franco-palestino Tarik Kiswanson, vencedor de um prêmio no Centre Pompidou, que será inaugurada em 29 de agosto em Porto Alegre, e a exposição sobre Antônio José da Silva, um "grande pintor clássico primitivo brasileiro", que atualmente está em Grenoble e seguirá diretamente para Porto Alegre antes de ir para o MAC da USP em São Paulo.

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  • 'Azira’i' emociona Avignon com ancestralidade, canto e resistência indígena do Brasil
    Jul 10 2025

    Na mostra paralela do Festival de Avignon de 2025, um espetáculo brasileiro vem arrebatando os franceses com sua força e poética ancestrais: Azira’i – Um Musical de Memórias, estrelado por Zahy Tentehar, do povo Tentehara Guajajara, e dirigido por Duda Rios. Em cena, a memória de Azira’i, mãe da atriz, ganha vida através da dramaturgia, do canto indígena e de uma linguagem cênica que ultrapassa fronteiras.

    Márcia Bechara, enviada especial a Avignon

    Zahy Tentehar se tornou a primeira atriz indígena a receber o Prêmio Shell, uma das maiores condecorações do teatro brasileiro. A obra, que agora ecoa no sul da França, nasceu de uma escuta profunda e de uma amizade transformadora.

    “Essa ideia nasceu quando nos conhecemos em uma peça. Conversando com Zahy, ela compartilhou a história da mãe dela. Aquilo me tocou profundamente”, contou o diretor Duda Rios. “Cinco anos depois, conseguimos o financiamento e criamos o espetáculo.”

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    No palco, Zahy está sozinha, "mas nunca solitária". Segundo ela, a presença da mãe, dos antepassados e de muitos povos reverbera em cada gesto, cada canto. “O palco está repleto de todo um povo, de muitas línguas. Eu não sinto em nenhum momento que estou sozinha”, afirma com convicção.

    Um dos aspectos mais potentes da montagem é o uso da língua Ze’eng eté, falada por seu povo. Em um país que, como ressalta o diretor Duda Rios, "foi historicamente colonizador, como a França", "o gesto de ensinar e compartilhar uma língua indígena carrega forte carga simbólica e política".

    “Trazer uma língua tão desconhecida internacionalmente, ensinar sua fonética e gramática à plateia, é uma inversão de papeis feita com suavidade”, observa Rios. “Convido as pessoas a experimentarem a estrutura do Ze’eng eté com afeto, não com imposição", completa a atriz Zahy Tentehar.

    Canto ancestral

    O canto herdado da mãe de Zahy é o eixo central da construção emocional e dramatúrgica do espetáculo. “Antes mesmo de ensaiar ou entrar no palco, eu tenho o hábito de cantar. Cantar me ajuda a ter ideias, a me concentrar. Para mim, é um lugar sagrado.”

    A recepção do público francês tem sido calorosa, embora reveladora de particularidades. “Eles se emocionam muito. Embora riam menos do que o público brasileiro, sentimos uma conexão genuína”, afirma Duda. “O espetáculo foi escrito para o Brasil, mas chega com a mesma potência aqui.”

    "Em cena, Zahy representa também um movimento de quebra de padrões estéticos e educacionais. Sem ter passado por uma escola tradicional de formação de atores, ela ocupa com autoridade e brilho o palco internacional", diz o diretor. “É muito satisfatório poder dizer que nós também somos criadores. Por muito tempo, nos impediram de estar aqui.”

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    Com legendas em francês e inglês, a peça preserva os trechos em Ze’eng eté sem tradução — uma escolha consciente que convida o público a sentir a língua pelo corpo, não apenas compreendê-la pela lógica.

    Azira’i – Um Musical de Memórias é mais que um espetáculo: é um reencontro com saberes ancestrais, uma afirmação estética e uma delicada insurgência que reverbera além das bordas do palco. A peça fica em cartaz até o dia 13 de julho no teatro Manufacture, na mostra paralela do Festival de Avignon de 2025.

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  • Cia brasileira traz materialidade radical do teatro em diálogo com a pornografia para Avignon
    Jul 9 2025
    A RFI conversou com a encenadora brasileira Janaina Leite, que traz para esta 79ª edição do Festival de Avignon História do Olho. Livremente inspirado no texto original do francês Georges Bataille, a obra é um dos espetáculos mais provocadores e iconoclastas da temporada brasileira homenageada na mostra paralela de 2025. Numa cena ocupada por 16 performers, o espetáculo constrói um diálogo ousado entre teatro e pornografia, desejo e morte, humor e transcendência. Márcia Bechara, enviada especial a Avignon Com uma trajetória marcada por investigações sobre o corpo, a performatividade e os limites entre realidade e ficção, Janaína Leite leva ao palco uma encenação que desafia convenções estéticas e morais. “A pornografia cruza uma dimensão estética e ética que me apaixona”, afirma a diretora. “Ela não é apenas repetição de corpos — é também criação de corpos. É um território de invenção, de disputa de narrativas e de imaginário.” Na versão original brasileira, o espetáculo incluía um entreato musical em que o público circulava, bebia e assistia a outras cenas. No entanto, essa parte foi retirada para a apresentação em Avignon. Ainda assim, a dimensão musical permanece como um elemento essencial da obra. “Ela traz uma dimensão paródica, que é muito cara ao Bataille — uma alegria quase ingênua, mesmo no contato com a dor e com a morte. As músicas brincam com o interdito de forma quase infantil. Tenho dois filhos que adoram falar ‘cocô’, ‘xixi’... e isso também está na peça, como uma forma de trazer à boca o que é proibido.” Leia também'Falar com os mortos é uma das bases do teatro', diz Milo Rau ao estrear peça-manifesto em Avignon "Horrível e sublime" A encenação inclui práticas extremas como fisting e suspensão corporal, e navega entre o sublime e o grotesco. “Bataille trabalha essas tensões extremas entre o corpo que apodrece, que goza, e o desconhecido, o cósmico, o belo. Ele é capaz de falar do horror e do sublime ao mesmo tempo. E você não sabe mais se está sentindo repulsa ou fascínio”, diz a diretora. “Isso tem muito a ver com o desejo, onde atração e repulsa são ambíguas.” Para Janaína, o teatro é um território híbrido, que carrega em sua origem práticas rituais. “Como trazer para o teatro de hoje uma materialidade radical? Como se, no passado, sacrificássemos um animal ou um corpo humano para oferecer ao sol — como numa arena. Essa imagem me fascina. E ela se conecta com o trabalho dos performers, que fazem uma cena de suspensão corporal e lidam, todos os dias, com uma pele que será perfurada, costurada depois.” A trilha sonora foi criada por André Medeiros Martins, Ultra Martini, Vini Vinithekid e Renato Navarro, que, segundo a diretora, foram fundamentais para a construção do espetáculo. “Eles criaram esse show dentro da peça. Tivemos que reduzir a duração de 2h50 para 2 horas por conta da coabitação de cena, mas o show cumpre essa passagem entre o cósmico e o vulgar, entre o intelectual e o bobo, talvez até o inocente.” Leia tambémTeatro brasileiro é homenageado no Festival de Avignon, o maior evento de artes cênicas do mundo Recepção do público europeu A recepção do público europeu tem sido diversa — e, para a diretora, isso é parte do processo. “Viemos de uma cena em São Paulo muito habituada à minha pesquisa. Aqui, talvez o olhar seja mais curioso, mais reticente. Mas não temos nenhuma intenção de chocar. É um convite afetuoso para pensar o corpo — e esses corpos.” A companhia já havia se apresentado na Alemanha, em Heidelberg, onde, segundo Janaína, viveu uma das experiências mais marcantes com a peça. “Foram 400 pessoas com a gente por três horas. Foi uma das apresentações mais maravilhosas que já fizemos", relembra. Em Avignon, a primeira apresentação foi “maravilhosa”, a segunda “mais difícil”. Mas a diretora vê nisso uma oportunidade: “Talvez a gente não tenha há algum tempo essa chance de sair de um certo consenso e ouvir, sentir reações inesperadas. Isso é precioso.” Com uma equipe de 23 pessoas, sendo 16 em cena, a companhia brasileira celebra a oportunidade de apresentar seu trabalho em um dos maiores festivais de teatro do mundo. “Está sendo um grande acontecimento cruzar o oceano e apresentar esse trabalho aqui. Ainda faltam seis apresentações, e estamos curiosos para ver como tudo vai se encaminhar”, conclui. * Para ver a entrevista completa com a diretora Janaína Leite, clique na imagem principal deste texto
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  • Anti-heroína de Dostoiévski, 'Nastácia' ocupa Avignon: um clássico russo atravessado pelo Brasil
    Jul 8 2025
    Durante mais de um século, ela foi reduzida a coadjuvante nas leituras tradicionais de O Idiota, clássico de Fiódor Dostoiévski. Mulher marcada pela tragédia, vilanizada ou santificada à força, Nastácia permaneceu silenciada — até agora. No palco da mostra paralela do Festival de Avignon de 2025, ela retorna com voz própria, arrebatadora, no espetáculo brasileiro Nastácia, a partir de uma ideia original da atriz Flávia Pyramo, através da encenação meticulosa — e premiada — de Miwa Yanagizawa. Márcia Bechara, enviada especial a Avignon Poucos personagens femininos da literatura russa são tão intensos, incômodos e desconcertantes quanto Nastácia Filíppovna Baráchkova, a mulher em torno da qual gira a tragédia de O Idiota, romance publicado por Fiódor Dostoiévski em 1869. Lida por muito tempo como uma figura secundária — quase um “obstáculo” no percurso do príncipe Míchkin, protagonista da obra — ela emerge, em releituras contemporâneas, como o verdadeiro coração pulsante do livro: uma mulher que diz não. Não ao perdão. Não ao amor. Não à paz. Sobretudo, não aos papéis impostos a ela pela sociedade e pelos homens. Sua rebelião poderia se irmanar à de figuras arquetípicas como Antígona, Medéia ou Lilith — mulheres que só puderam ser caladas pela morte. Nastácia não está louca: está em fúria. E Dostoiévski, ainda que sem compreendê-la inteiramente, a conserva intacta em sua raiva. Esse é, talvez, o maior paradoxo de seu gênio. Nastácia Filíppovna (interpretada visceralmente por Flávia Pyramo, idealizadora do projeto) não é uma heroína. É uma ferida aberta. Bela demais, intensa demais, lúcida demais, ela carrega o estigma de uma juventude arruinada: seduzida e abusada por Tótski (vivido no palco pelo ator Chico Pelúcio, veterano e um dos fundadores do Grupo Galpão), um aristocrata que a “acolhe” para, na verdade, possuí-la, ela entra na vida adulta com a reputação destruída e um destino traçado. Espera-se que ela se arrependa, que peça perdão, que aceite seu lugar. Ela recusa. Completa o trio da montagem brasileira a submissão oportunista de Gánia, pretendente de Nastácia, que aceita se casar com ela por conveniência e influência de Tótski, vivido com precisão e humor pelo ator Lenine Martins. Não muito longe do teatro onde a companhia brasileira encena o espetáculo, um caso que chocou a França foi julgado: a história terrível dos abusos perpetrados contra Gisèle Pélicot, francesa drogada pelo marido durante décadas e estuprada repetidamente por estranhos. Em uma homenagem extraordinária neste ano, o Festival de Avignon — dirigido por Tiago Rodrigues — fará uma reencenação do processo de Pélicot com um grupo de atores, intitulada Le Procès Pélicot (O Processo Pélicot), no dia 18 de julho. "Nastácia passa por todos os abusos imagináveis e inimagináveis que nós, mulheres, conhecemos — do século 19 até hoje. Inclusive, a gente cita o nome de Gisèle na peça, quando fala de tantas outras mulheres [abusadas], desde Desdêmona até a adolescente da vida real que inspirou Dostoiévski a compor a personagem Nastácia", conta Flávia Pyramo. "É impressionante ver [no texto do autor russo] essa figura, esse ser, naquela época... Porque hoje ainda, fazendo a peça, ela aparece tão avante [de seu tempo], nessa luta e, principalmente, nessa consciência da dignidade", pontua a atriz. Com texto de Pedro Brício e direção artística de Miwa Yanagizawa, o espetáculo transcende a literatura clássica para dialogar diretamente com os conflitos atuais: o feminicídio, a banalização da violência, o apagamento histórico das mulheres. Leia tambémThomas Ostermeier discute 'verdade' como ruptura em tragédia de Ibsen no Festival de Avignon Misoginia estrutural A peça não traz apenas uma releitura inovadora, mas também uma denúncia. A obra de Dostoiévski — assim como boa parte do cânone russo do século 19 — é atravessada por uma misoginia estrutural. As personagens femininas são constantemente condenadas a papéis de martírio, servidão ou loucura. Sonia, em Crime e Castigo, é a prostituta redentora. Grushenka, em Os Irmãos Karamázov, é a femme fatale manipuladora. Em quase todos os casos, a mulher é um instrumento — seja de punição ou de purificação masculina. Nastácia Filippovna rompe esse destino. Ela não se arrepende, não se redime, não ama para ser perdoada. Ela denuncia. Sabota. Sobrevive, especialmente em sua versão brasileira. No lugar da doçura trágica de Míchkin, é a lucidez cortante de Nastácia que conduz a narrativa. Ela não é mais coadjuvante. É o centro nervoso do drama, a ferida exposta de uma sociedade que transforma desejo em punição. Vencedora de diversos prêmios — entre eles o Shell, o APTR e o Cesgranrio —, a montagem brasileira se impõe como um "ato poético e político". Lucidez brutal No centro de sua trajetória ...
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  • Exposição digital contempla registros da luta democrática brasileira na França entre 2016 e 2023
    Jul 3 2025
    A partir desta quinta-feira (3) vai ao ar a mostra online “Memória dos Movimentos de Resistência na França 2016–2023”, uma exposição que reúne um acervo inédito de registros das manifestações protagonizadas pela diáspora brasileira pela defesa da democracia no exterior. Segundo a jornalista e escritora Marcia Camargos, idealizadora da Associação Memória da Resistência Brasileira na França, a mostra digital apresenta imagens captadas em Paris durante momentos-chave da história política brasileira. Lançada no ano Brasil-França, porém sem a chancela oficial da temporada, a exposição virtual tem a intenção de valorizar as memórias democráticas e laços entre movimentos militantes dos dois países, disponibilizada em formato bilíngue português-francês. “Para nós é extremamente gratificante porque temos consciência de que, embora o nosso projeto não tenha recebido o selo oficial do ano Brasil-França, se não fossemos nós na luta durante os últimos sete anos, não haveria o ano França-Brasil, porque a democracia teria sido derrotada. Então, de alguma forma, graças a nós esse ano da Temporada Brasil-França foi possível”, diz Marcia Camargos nos estúdios da RFI. De um projeto coletivo a uma exposição digital A jornalista natural de Belo Horizonte, que vive na França há quase dez anos, analisa que o compartilhamento de experiências da Resistência das duas nações possui muitos pontos positivos. “Nós aprendemos muito com os nossos companheiros franceses e eu creio que o contrário também é verdadeiro. Eles foram essenciais na nossa luta e eles já tinham um know how, porque muitos de nós não tínhamos um histórico de militância, muitos não tinham essa vivência. Então, essa relação com os sindicatos, os partidos de esquerda, foi de extrema importância para nos mostrar o caminho das pedras e nos dar algumas dicas essenciais”, descreve ela, que se considera uma militante progressista desde a adolescência. “Para dar vida a esse projeto, nós estivemos nas ruas desde 2016, aos primeiros rumores de golpe contra a Dilma. Foi quando surgiu MD 18 (Movimento Democrático 18 de março), que tomou as ruas de Paris e a partir daí nós não paramos mais”. Ela explica que acompanhou, no exterior, o surgimento de “vários grupos apartidários de forma espontânea e funcionamento horizontal, que realmente reivindicavam e denunciavam os ataques ao estado de direito no Brasil”. Ela cita o Coletivo Paulo Freire, Mulheres da Resistência (Femmes de la Résistance), o núcleo do PT de Paris, os amigos do MST, a Rede Europeia para a Democracia no Brasil (RED-Br), associação Autres Brésils, entre outros movimentos, sindicatos e partidos políticos que apoiaram e contribuíram com fotos e informações. Segundo Marcia, graças ao agrupamento de materiais doados por cada voluntário em Paris foi possível realizar a pesquisa que originou a criação da mostra online. “A partir daí, veio a questão de organizar e datar essas fotos, pois não adianta você jogar um monte de material sem dizer, sem descrever o seu porquê, quando aconteceu... Foi um trabalho de formiguinha e detetive ao mesmo tempo”, descreve a jornalista Marcia Camargos. Política do Brasil através dos movimentos democráticos em Paris Marcia Camargos cita momentos da exposição que a marcaram, como os protestos performáticos ‘Genocídio’, na frente da Torre Eiffel, em 2020, contra a má gestão da pandemia da Covid-19 no Brasil, além de um manifesto realizado na fachada da Embaixada do Brasil, em Paris, com o objetivo de chamar a atenção da comunidade internacional para o veto do ex-presidente brasileiro Bolsonaro, em outubro de 2021, sobre a criação de um programa de fornecimento de absorventes para mulheres em situação precária. “Memória dos Movimentos de Resistência na França” foi dividida em seis partes em ordem cronológica: primeiro a questão do golpe com o movimento "Não vai ter golpe"; depois o "Fora Temer"; seguido do"'Ele não"; a quarta parte trata do Lawfare, quando o presidente Lula foi preso; depois o "Fora Bolsonaro"; e, por fim o "Democracia em perigo", período que compreende o primeiro e segundo turno das eleições presidenciais de 2022, que evidenciou um temor popular sobre uma tentativa de novo golpe de Estado no Brasil. Marcia Camargos conta que, na reta final, o projeto ganhou o apoio do Memorial da Resistência de São Paulo, por isso, a exposição virtual é acessível através do site oficial do Memorial no link: “Memória dos Movimentos de Resistência na França 2016-2023”. São 800 documentos selecionados a partir de mais de mil iniciais, que podem ser consultados como um registro histórico e permanente, com acesso público e download gratuito. A programação não é apenas digital e não se concentra só entre Paris e São Paulo. Os interessados podem visitar ainda uma exposição na Aliança ...
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  • Combate às drogas tem de focar nas pessoas e nas condições de vulnerabilidade, diz especialista
    Jun 26 2025

    A ONU estabeleceu que 26 de junho é o Dia Internacional contra o Abuso e o Tráfico Ilícito de Drogas. A data foi criada em 1987 para conscientizar a população mundial sobre os problemas desencadeados pela venda e consumo de entorpecentes. Maria Lúcia Oliveira de Souza Formigoni, especialista reconhecida sobre o uso e dependência de drogas no Brasil, afirma que “a principal droga que nos causa problema é o álcool”. Ela preconiza que o combate às drogas tem de focar “na pessoa e nas condições de vulnerabilidade psicossociais”.

    O fenômeno do consumo e venda de drogas cresce anualmente com o surgimento de novas substâncias, rotas de tráfico e infiltração do crime organizado na política de vários países. Maria Lúcia Oliveira de Souza Formigoni, coordenadora da Unidade de Dependência de Drogas do Departamento de Psicobiologia da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), destacou a importância do Dia Internacional contra o Abuso e o Tráfico de Drogas a como um "momento de reflexão".

    Formigoni, que também é presidente do Instituto de Estudos Avançados e Convergentes (IEAC) da Unifesp, explicou que o foco das políticas de combate às drogas deve estar na pessoa e nas condições psicossociais e biológicas que levam ao uso de drogas.

    Ela mencionou, por exemplo, que "a falta de lazer, principalmente em comunidades mais vulneráveis, acaba sendo associada ao uso de drogas, principalmente o álcool, que é o maior problema, não só no Brasil, mas no mundo”.

    Como o consumo do produto é legalizado, ele não é considerado uma droga por muitas pessoas, mas o álcool “é uma das drogas psicotrópicas que mais causa dependência”, reitera.

    Falta de dados epidemiológicos recentes

    Formigoni lamentou a falta de dados atualizados sobre o consumo de drogas no Brasil. Segundo ela, o último levantamento nacional é de 2017. A pesquisadora criticou a paralisação de “políticas progressivas” iniciadas nos governos petistas durante o governo Bolsonaro e elogiou os esforços do governo atual para retomar essas ações, apesar das limitações de recursos.

    A especialista destacou que os dados disponíveis indicam que o álcool é a principal droga, seguido pela maconha, cocaína, crack e anfetaminas. Ela também expressou preocupação com o uso de esteroides anabolizantes e a mistura de álcool com bebidas energéticas, especialmente entre jovens.

    Quanto às políticas atuais de combate às drogas, Formigoni considera que "são adequadas”, apesar de algumas limitações práticas. Ela elogiou a criação de Centros de Atenção Psicossocial (Caps AD) dentro do SUS, que propõem tratamento especializado aos dependentes. Existem, ainda, várias ferramentas digitais, como o www.bebermenos.org.br dentro do qual a pessoa pode se cadastrar para fazer uma intervenção virtual para reduzir problemas associados ao uso de álcool.

    Legalização da maconha

    Maria Lucia Formigoni reconhece a complexidade das questões relacionadas ao tráfico e à segurança. Em relação ao debate sobre a legalização e descriminalização de algumas drogas, sugeriu que "a legalização da maconha pode reduzir alguns problemas", como registrado em países que autorizam o uso medicinal do canabidiol, mas que a discussão ainda é complexa.

    Na opinião da especialista, uma resposta mais eficaz para o problema das drogas passa pela questão da saúde mental.

    "O foco mais importante tem de ser na pessoa e nas condições de vulnerabilidade psicossociais que elas têm".

    Paralelamente, tem a criminalidade, que envolve questões como o tráfico de drogas e de influência. A professora titular da Unifesp diz que as duas questões se interligam, mas conclui que “a repressão de uma maneira violenta não é o que vai resolver o problema das pessoas que usam álcool e drogas”.

    Clique na foto principal para ouvir a entrevista completa.

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    15 m
  • “O tempo é nosso maior inimigo na luta contra a crise climática”, alerta diretora da COP30
    Jun 25 2025
    Em um contexto geopolítico difícil, em que as negociações climáticas registram avanços e retrocessos, e que a discussão sobre combustíveis fósseis ainda polariza, a diretora da COP30, Ana Toni, afirma que a transição energética é inevitável, mas que a transição justa é escolha. “E tem que ser feita nessa década crítica", disse ela à RFI em Bonn, na Alemanha, onde participa da 62ª reunião dos Órgãos Subsidiários da ONU (SB62). Vivian Oswald, correspondente da RFI, em Bonn (Alemanha) "Não tenho menor dúvida que a transição vai acontecer. Sempre digo que estamos num avião que tem 99% de chance de cair. E estamos colocando os nossos filhos e os nossos netos nele”, ilustra a diretora da COP30. “A gente não é suicida. Sabe que vai ter essa transição”, resume. “O tema da transição é inevitável. Mas a transição justa é escolha. E é disso que a gente está falando aqui”, destaca, lembrando que, quanto mais rápido essa transição acontecer, menos pessoas, principalmente os mais vulneráveis, vão sofrer. “São países inteiros que podem desaparecer em 10, 15, 20 anos. Essa escolha a gente tem que fazer nessa década crítica, e ainda não está fazendo”, insiste. O grande problema, segundo Ana Toni, é que o modelo de desenvolvimento global consolidado há mais de 200 anos baseia-se em combustíveis fósseis, numa agricultura expansionista, e numa economia linear. "E tentar mudar isso, é muito difícil”, resume. “O nosso pior inimigo é o tempo. Tentar mudar isso em 10 anos ou 20 anos é muito difícil, porque [para] todos nós, consumidores, é muito difícil mudar os nossos hábitos, não é?”, pondera. Ela considera que as populações estão conscientes de que a mudança do clima existe, é causada pelo ser humano, e que uma transição é necessária. Porém, ainda há dificuldade em entender as complexas negociações climáticas. Furar a bolha do jargão climático Egressa da sociedade civil, a especialista reconhece que é preciso mudar a comunicação, furar a bolha dos jargões, sempre técnicos demais, para que as pessoas se sintam representadas nas discussões globais sobre clima e se envolvam sem precisar ser ativistas climáticos. Além disso, ela também alerta para o risco das fake news climáticas e o que chama de negacionismo das soluções. "O espírito do mutirão, que no Brasil a gente entende muito bem, que a gente tem tentado comunicar para fora, é muito isso. É uma COP das pessoas, para as pessoas, onde o tema de transição justa está no centro", afirma, enquanto come um sanduíche num rápido intervalo da agenda frenética de encontros com representantes de mais de 190 países e da sociedade civil que manteve nos últimos dias. Brasil prepara fundo bilionário para florestas Entre as conquistas que gostaria de ver nesta COP30 no Brasil, Ana Toni destaca avanços sobre medidas de adaptação climática, emperradas desde a última COP29 em Baku, no Azerbaijão, mas que começam a andar em Bonn — a última grande reunião antes da COP30 amazônica de novembro —, o financiamento granular, "com soluções específicas para projetos específicos”, e novos instrumentos econômicos para manutenção da natureza, entre eles o TFFF (Tropical Forest Forever Facility, na sigla em inglês), um fundo bilionário para a conservação das florestas de pé, que será lançado em novembro em Belém. Este último é a grande aposta do governo como resultado concreto desta COP30. A ideia é que comece com uma capitalização de US$ 25 bilhões de fundos soberanos e alavanque outros US$ 100 bilhões. A diretora da COP30 reconhece a frustração de muitos com os debates que se repetem ou se prologam todo ano nas COPs. "Logicamente, as pessoas estão vendo o tema da mudança do clima, que a gente fala de COP em COP, mas está ficando cada dia mais quente, tem mais inundação. Então, assim, para que está servindo, né? E a gente não consegue traduzir para o dia a dia das pessoas. Mas deveria ser fácil. Pensa em 10 anos. A gente nem falava, por exemplo, de veículo elétrico, de solar e eólica, de combate a desmatamento, como a gente está falando agora, ou de agricultura regenerativa, de economia circular”, afirma. Todos esses tópicos que agora começam a ser realidade no cotidiano das pessoas e, segundo ela, começaram em boa medida porque o regime de mudança do clima, como é conhecido o conjunto de acordos internacionais, políticas nacionais e ações coordenadas para lidar com as alterações climáticas globais, impulsionou esse debate. "Mas a gente não faz essa ligação. O que o cara que está comprando um carro elétrico tem a ver com a convenção do clima e as COPs? E tem", aponta. Segundo ela, o que começou de cima para baixo passa a ter um forte movimento de baixo, com a participação mais ativa de grupos da sociedade, com mudanças no estilo de vida, como o vegetarianismo, a agroecologia, entre outros. ...
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