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  • A Europa, o Azerbaijão e o silêncio sobre Bahruz Samadov
    Jul 7 2025
    Bahruz Samadov tem 30 anos, é pesquisador e pacifista – e foi injustamente condenado a 15 anos de prisão no Azerbaijão. Sua história, ignorada por líderes europeus, revela os silêncios convenientes da política internacional e mostra, mais uma vez, como o petróleo costuma pesar mais que a democracia. Thomás Zicman de Barros, analista político Hoje eu vou falar sobre o Azerbaijão. Sim, o Azerbaijão: um pequeno país que muitos sequer sabem apontar no mapa e que raramente recebe atenção no noticiário brasileiro. Para explicar o motivo, basta um nome e um sobrenome: Bahruz Samadov. Ele é um jovem pesquisador, de 30 anos, que acaba de ser injustamente condenado a 15 anos de prisão sob a acusação de alta traição. Sem dúvida, alguém pode se perguntar: “Mas o que isso tem a ver com a Europa?” – que, afinal, costuma ser o assunto dessa coluna. Esta crônica trata da Europa sob diversos aspectos. Primeiro porque, tecnicamente, o Azerbaijão faz parte da Europa. O país fica no Cáucaso, considerado a fronteira sudeste do continente. É banhado pelo Mar Cáspio, sua capital é a cidade de Baku e faz fronteira com a Geórgia, a Armênia – dois países também frequentemente incluídos no mapa político da Europa –, a Rússia, a Turquia e o Irã. É um país de maioria muçulmana xiita, mas com um governo, em princípio, laico. Além disso, o Azerbaijão é membro do Conselho da Europa, uma instituição que reúne quase todos os países do continente. E aqui podemos entrar no segundo ponto em que a Europa aparece nessa crônica: as relações entre líderes europeus e o governo azeri. Afinal, há países do continente que não integram o Conselho. A Rússia, por exemplo, foi expulsa após a invasão da Ucrânia. Belarus, por sua vez, jamais foi aceita. Em ambos os casos, o motivo é a cláusula democrática prevista pelo estatuto da organização, que, em princípio, só permite que lá estejam democracias. Então o Azerbaijão é uma democracia pujante? A realidade é mais complicada. País do ex-bloco soviético O Azerbaijão fez parte do Império Russo, depois integrou a União Soviética e, no início dos anos 1990, com o colapso do bloco socialista, se tornou um país independente. Seu primeiro presidente foi Heydar Aliyev, um homem forte da KGB nos tempos soviéticos, que depois passou o poder, em 2003, para o seu filho, Ilham Aliyev, que governa o país há 20 anos – e que inclusive colocou a própria esposa no cargo de vice-presidente. É verdade que o clã Aliyev tem apoio interno. O país cresceu muito nas últimas décadas, enchendo o bolso de alguns, apesar da desigualdade ter também aumentado. Isso dito, o apoio também é mantido pela perseguição a opositores e por um discurso nacionalista inflamado nos últimos três anos, quando o Azerbaijão iniciou uma controversa guerra com a Armênia pela região do Alto Carabaque. Trata-se de um território historicamente disputado – como tantos no antigo espaço soviético, onde fronteiras rígidas tentam separar povos que sempre viveram lado a lado –, e em 2023 o Azerbaijão forçou o êxodo da população armênia da região, num ato que muitos classificam como limpeza étnica. Mas, apesar de tudo isso, o Azerbaijão continua sendo tratado como um parceiro confiável. Por quê? Em grande parte porque Baku tem petróleo e gás. E petróleo e gás, como sabemos, podem em muitos momentos pesar mais do que compromissos com democracia e direitos humanos. Foi nesse contexto que Bahruz foi preso. Ele havia voltado ao Azerbaijão em agosto do ano passado para visitar sua avó, Zibeyde Osmanova, octogenária e única integrante viva da família. Era doutorando na Universidade Carlos, em Praga, e nunca se envolveu em qualquer ato de violência. Seu crime? Escrever colunas de opinião em inglês sobre política caucasiana e manter contato com outros ativistas pela paz – inclusive da Armênia. Isso foi o suficiente para ser acusado de traição e condenado a 15 anos de prisão. Na semana da condenação, ele tentou tirar a própria vida. Um colega de cela o salvou. Hoje, ele foi transferido para uma prisão numa região árida e isolada, em condições preocupantes. Bahruz se tornou um símbolo, um rosto para a repressão política no Azerbaijão. Mas está longe de ser um caso isolado: segundo organizações independentes, mais de 375 dissidentes estão atualmente presos no país, entre eles mais de 25 jornalistas, além de pesquisadores e ativistas forçados ao silêncio ou ao exílio. Silêncio A Europa, tão rápida em denunciar abusos quando a Rússia invadiu a Ucrânia, dessa vez ficou praticamente em silêncio. Quando o Azerbaijão inicia guerras e prende opositores, poucos reagem. Ao contrário: Ursula von der Leyen, presidente da Comissão Europeia, trata Aliyev como um grande parceiro. No ano passado, o Azerbaijão sediou a COP29 – uma conferência do clima presidida por um país cuja riqueza vem do petróleo. E...
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  • Entre ameaças e recuos: o estilo Trump nas relações comerciais globais
    Jul 2 2025

    Donald Trump voltou a colocar o comércio internacional no centro da sua estratégia geopolítica, reacendendo disputas tarifárias e retomando negociações com alguns dos principais parceiros comerciais dos Estados Unidos. No entanto, sua abordagem, marcada por improvisos, ameaças e recuos, tem produzido mais incertezas do que consensos duradouros.

    Thiago de Aragão, analista político

    A recente reunião com o primeiro-ministro indiano Narendra Modi, na última sexta-feira (27), ilustra bem esse estilo: avanços pontuais são ofuscados por uma condução errática que dificulta previsibilidade e confiança. Ao mesmo tempo, sua postura frente à China e sua retórica diante da União Europeia indicam que, mais do que construir pontes, Trump ainda aposta em táticas de pressão unilateral como principal moeda de negociação. Uma estratégia que pode ter efeitos imediatos, mas cobra caro no longo prazo.

    Nas negociações com a China, Trump conseguiu uma trégua tarifária de 90 dias, evitando aumentos imediatos e abrindo espaço para discussões sobre matérias‑primas estratégicas, como as terras raras, o que, por ora, acalmou os mercados e gerou fôlego político. Ainda assim, sua estratégia de alternar ameaças e recuos, apelidada por investidores de Wall Street de “TACO Trade” (Trump Always Chickens Out), mina a credibilidade: ao impor tarifas altas, recuá-las sob pressão e depois retomá-las, ele gera instabilidade para empresas e consumidores.

    Com relação à Índia, Trump deixou claro que energias estão voltadas para um “acordo muito grande”, especialmente após se reunir com Narendra Modi. A Índia, por sua vez, ofereceu eliminar tarifas sobre commodities como amêndoas, pistaches e nozes, além de estender tratamento preferencial a setores estratégicos como energia, automóveis e defesa. Esse avanço mostra coordenação entre os líderes e um comprometimento bilateral.

    Porém, os problemas persistem. A mais recente rodada de negociações enfrentou impasses graves: divergências sobre tarifas em autopeças, aço e produtos agrícolas ameaçam bloquear o acordo com prazo até 9 de julho. Além disso, Trump pressiona por cortes profundos de tarifas indianas em soja, milho, automóveis e bebidas, exigindo também redução de barreiras não‑tarifárias, o que os indianos consideram excessivo. Sem a aprovação da TPA (Trade Promotion Authority) pelo Congresso, Trump não tem mandato claro para reduzir tarifas unilateralmente, o que fragiliza sua posição.

    Também há fatores internos na Índia: o partido opositor cobra maior transparência, enquanto temores sobre concessões em áreas sensíveis, como segurança fronteiriça relacionada ao Paquistão, criam tensão política.

    No caso da União Europeia, Trump adiou sua ameaça de tarifas de até 50% até 9 de julho, mas deixou claro que carros, aço e alumínio estão na mira. A UE, por sua vez, está aberta a negociar, mas ressalta que “all options remain on the table”, ou seja, retaliações de até € 95 bilhões estão preparadas se o acordo não for equilibrado. Internamente, Alemanha pressiona por um acordo rápido para proteger sua indústria automotiva, enquanto a França rejeita termos assimétricos, o que deixa o consenso europeu ainda instável.

    No fim das contas, Trump vem tentando ser eficaz ao usar a tensão tarifária como instrumento de negociação: ele pressiona parceiros e usa o tempo a seu favor. Contudo, sua inconsistência (ameaça, recua, ameaça de novo), os termos exigentes e a falta de legitimidade no processo (como no caso da Índia, sem TPA) corroem sua reputação como negociador confiável. Com Modi, houve avanços reais, mas também falhas críticas que podem estacionar o acordo. Já com a UE, o futuro depende de Trump repetir uma tática coercitiva ou partir para um compromisso mais estruturado, antes que o prazo de 9 de julho chegue sem perspectivas claras.

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  • Quando neutralidade vira cumplicidade: o papel dos países europeus no conflito entre Irã e Israel
    Jun 23 2025
    Quando líderes europeus começavam a esboçar críticas à matança em Gaza, o ataque israelense ao Irã os devolveu à chantagem de Netanyahu — à qual continuam a se submeter, não sem cumplicidade. Thomás Zicman de Barros, analista político* Já faz dez dias que Israel iniciou sua ofensiva militar no Irã. No sábado (21), Donald Trump anunciou que os Estados Unidos haviam se unido aos esforços israelenses e bombardeado alvos ligados ao programa nuclear iraniano. Onde, porém, fica a Europa nessa situação? O novo chanceler alemão, Friedrich Merz, declarou que Israel está “fazendo o trabalho sujo” dos países ocidentais ao bombardear o Irã — uma frase que, em sua franqueza, escancarou uma cumplicidade calculada. Ao mesmo tempo, o presidente francês Emmanuel Macron responsabilizou Teerã pela escalada, mesmo diante de ataques israelenses que violaram de forma inequívoca o direito internacional e sabotaram negociações diplomáticas já em curso. Mesmo sem entrar diretamente no conflito, Reino Unido, França e Alemanha, cada um à sua maneira, reafirmaram o alinhamento com Israel num momento em que, após quase dois anos de genocídio em Gaza, começavam a emergir críticas à brutalidade da campanha militar e ao governo de extrema direita que conduz o país. O ataque ao Irã interrompeu esse movimento — e fez recuar até os mais tímidos sinais de desconforto. Mesmo os esforços subsequentes para um retorno à diplomacia, como a reunião infrutífera entre europeus e iranianos em Genebra na sexta-feira (20), mostraram-se insuficientes para conter a escalada ou mudar o tom público das potências europeias. Ao contrário, mesmo após a entrada dos americanos na ofensiva contra o Irã, a primeira reação de Kaja Kallas, chefe da diplomacia europeia, foi de condenar Teerã. Essa postura escancara a seletividade na aplicação do direito internacional — para não dizer seu caráter farsesco. O que é intolerável em alguns casos é relativizado em outros. O que é chamado de crime, noutros contextos, vira legítima defesa. Apoio europeu a Israel responde a razões históricas e estratégicas O apoio europeu a Israel não se dá apenas por inércia diplomática: responde a razões históricas e estratégicas. A Alemanha invoca um “imperativo moral” de apoio incondicional a Israel desde o pós-guerra — mas esse imperativo, longe de promover responsabilidade ética, tem frequentemente servido para silenciar críticas legítimas, com censura e perseguição a manifestações contrárias à ofensiva israelense. França e Reino Unido, embora menos marcados por esse passado, seguem tentando preservar sua influência num cenário de instabilidade regional crescente. A contenção do regime iraniano — percebido como agente central de desestabilização no Oriente Médio — serve como justificativa conveniente para manter o apoio a Israel, mesmo diante de um ataque preventivo sem base legal que, este sim, elevou o risco de uma escalada regional. Ao se repetir apesar de transgressões reiteradas, esse apoio fragiliza a credibilidade europeia e expõe o uso seletivo das normas que ela mesma reivindica como universais. Para entender essa lógica de cumplicidade, é preciso enxergar os múltiplos reféns que o governo Netanyahu produz — por diferentes meios e em diferentes planos. Sim, há os reféns reais ainda mantidos pelo Hamas, cuja libertação Netanyahu encena buscar. Mas há também outros tipos de reféns, dentro e fora de Israel. Identidade judaica refém de Netanyahu O primeiro deles é a própria identidade judaica. Há décadas, Netanyahu tenta fundir seus governos ao Estado, e o Estado à identidade judaica — como se fossem uma só coisa. A crítica ao seu governo vira crítica a Israel; a crítica a Israel, antissionismo; o antissionismo, antissemitismo — quando não puro negacionismo do Holocausto. Essa cadeia de equivalências é falsa, mas altamente eficaz. Ela silencia vozes dissidentes, inclusive judaicas. E consolida, tanto à esquerda quanto à direita, a ideia de uma judaicidade à imagem e semelhança da base social de Netanyahu: uma extrema direita ultraortodoxa, nacionalista, e parte significativa da população mizrahi — historicamente marginalizada pela elite asquenaze, e hoje marcada por ressentimentos e receptiva ao discurso de força. Esse movimento interno se intensificou com os atentados de 7 de outubro de 2023. Antes deles, Netanyahu enfrentava um desgaste crescente — político, institucional e jurídico — e o país vivia uma das maiores ondas de protesto de sua história recente, contra os ataques do governo à independência do Judiciário e às liberdades democráticas. O primeiro-ministro, à época, já acumulava acusações de corrupção e se via confrontado com a possibilidade concreta de prisão. Pela primeira vez em décadas, esboçava-se uma articulação entre setores progressistas judeus e partidos árabes — ainda incipiente...
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  • Trump adota "labirinto estratégico" na guerra entre Israel e Irã
    Jun 16 2025

    Na tarde de 15 de junho de 2025, Israel e Irã trocaram intensas ofensivas: Teerã disparou mísseis e drones sobre cidades israelenses, atingindo áreas civis em Tamra, Bat Yam, Tel Aviv, Jerusalém e Rehovot, e deixando dezenas de mortos e muitos feridos. Do lado iraniano, o número de vítimas já ultrapassa 400, com centenas de feridos desde o início da Operação Rising Lion.

    Thiago de Aragão, analista político

    Diante desse clima de guerra que avança para o terceiro dia, Donald Trump assumiu o centro do palco internacional. O chefe da Casa Branca confirmou que sabia dos ataques israelenses, salientando que foi mantido informado, mas reiterou com firmeza que “os EUA não participaram diretamente” da ofensiva. Mais do que isso, vetou uma possível tentativa de assassinato do aiatolá Khamenei por Israel alegando que, até aquele momento, nenhum americano havia sido morto, e que um ataque tão extremo seria “escalada demais”.

    Mas a retórica de Trump permanece poderosa. O presidente norte-americano chamou as ofensivas de “excelentes”, e advertiu a República Islâmica que “poderemos acabar esse conflito sangrento” se os EUA ou seus cidadãos forem alvos. Em outra declaração, relembrou seu histórico de negociações, afirmando que Israel e Irã “logo farão um acordo”, num eco ao processo entre Índia e Paquistão.

    Não surpreende que seus aliados no Congresso estejam divididos. O líder republicano do Senado, John Thune, pediu respostas militares em caso de ataque a americanos. Em plena “Fox News Sunday”, ele afirmou que os EUA lançariam “toda sua força” se Teerã ousasse visar a América. Já o senador Rand Paul condenou qualquer intervenção, dizendo que “não é papel dos EUA entrar nessa guerra”.

    Essa tensão dentro do Partido Republicano é visível: parte do grupo defende apoio sem restrições a Israel, combinando retórica beligerante e reforço militar, enquanto a ala “America First”, alertada por Tucker Carlson, Marjorie Taylor Greene e Rand Paul, pressiona para que Trump não arraste os EUA para um conflito prolongado.

    E Trump? Ele segue em seu próprio labirinto estratégico. Retomou a campanha de “máxima pressão” sobre o Irã, com sanções fortes e envio de defesas antiaéreas à região. Tudo isso sem autorizar tropas terrestres nem ataques diretos. Pivô dessa atuação, vetou o assassinato de Khamenei, mas encorajou os israelenses a manter elevados ataques contra instalações nucleares e militares iranianas — ao mesmo tempo que sinalizou abertura a negociações indiretas.

    A pressão interna é intensa: Trump precisa manter seus apoiadores MAGA (Make America Great Again) satisfeitos, sem abrir mão de parecer firme em defesa de Israel. E isso enquanto a economia interna pode ser afetada por choques nos preços do petróleo, típicos de conflitos no Oriente Médio.

    As próximas 48 horas serão decisivas. Caso o Irã ataque bases ou cidadãos americanos, Trump já deixou claro que o país responderá com força total. Por outro lado, se persistir a escalada apenas entre Israel e Irã, ele aposta na desescalada diplomática — talvez no G7 — para evitar que os EUA sejam tragados num confronto maior.

    Mas o jogo é arriscado. Um míssil errado ou um ataque a interesses americanos pode jogar o país numa rota de guerra direta, exatamente o cenário que a ala isolacionista teme. E Trump, com sua combinação de bravata, veto calculado e diplomacia relâmpago, está novamente no comando de um equilíbrio frágil, um fino limite entre contenção e confronto.

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  • Como a esquerda britânica pavimenta o caminho da extrema direita
    Jun 9 2025
    A extrema direita não cresce sozinha - ela é também normalizada. O Partido Trabalhista britânico, sob Keir Starmer, parece acreditar que pode conter esse avanço adotando seu vocabulário e sua visão de senso comum — mas, ao fazer isso, só acelera o que diz combater. O primeiro-ministro britânico Keir Starmer gosta de dizer que está do lado do “senso comum”. A frase parece inofensiva, mas revela muito sobre a estratégia atual do Partido Trabalhista — uma estratégia que aposta que, para conquistar votos, basta se aproximar do discurso da extrema direita, como se o povo já pensasse como ela. Mas o senso comum não está dado de antemão: ele é sempre construído. E ao presumir que esse senso comum é contra a imigração, contra ações afirmativas, contra o Estado social, o Labour não disputa ideias — apenas cede terreno.Quando Starmer venceu as eleições no ano passado, muitos celebraram o fim do desgaste acumulado de sucessivos governos conservadores. Mas desde o início, era possível perceber as limitações da cúpula trabalhista, que passara os anos anteriores removendo qualquer vestígio da agenda progressista do antigo líder Jeremy Corbyn e expurgando dissidentes à esquerda. Esse gesto, apresentado como sinal de responsabilidade, já era um prenúncio do que viria: concessões sistemáticas à retórica da extrema direita.Essa naturalização do discurso adversário é o que se chama de “normalização”. Ela ocorre, primeiro, quando a própria extrema direita tenta parecer respeitável — como se soubesse “comer com talheres”, suavizando o tom e se apresentando como porta-voz da “maioria silenciosa”. Mas o passo mais decisivo se dá quando partidos tradicionais aceitam que a extrema direita representa o tal “senso comum” — e, a partir disso, adotam suas ideias, seu vocabulário e suas prioridades. Assim, acabam legitimando esse discurso. E isso não é exclusividade da direita.Se os conservadores britânicos flertaram abertamente com o extremismo sob Boris Johnson, Liz Truss e Rishi Sunak — que fez da luta contra a imigração sua principal bandeira —, agora é o Partido Trabalhista que parece decidido a seguir o mesmo caminho. Em sua tentativa de se reconciliar com um pretenso “centro” dito “moderado”, o governo liderado por Keir Starmer tem mantido cortes em programas sociais, retrocedido em políticas de inclusão — como as ações afirmativas, tachadas de “woke” — e endurecido o discurso contra a imigração.Como se não bastasse, Starmer elogiou publicamente a primeira-ministra italiana Giorgia Meloni — cuja trajetória vem diretamente da tradição neofascista —, apontando sua política anti-imigração como exemplo para a Europa. Em maio, afirmou que a Grã-Bretanha corria o risco de se tornar “uma ilha de estranhos”, ecoando, talvez de forma involuntária, o célebre discurso de Enoch Powell, um dos fundadores do racismo político moderno no Reino Unido.Essa guinada busca reconquistar os votos populares que teriam migrado para partidos de extrema direita como o Reform UK, de Nigel Farage. Mas essa aposta repousa sobre uma série de equívocos. O primeiro é uma caricatura paternalista da classe trabalhadora, tratada, ainda que implicitamente, como inerentemente branca e reacionária — o que os dados não confirmam: os trabalhadores britânicos são diversos, tanto em origem quanto em posicionamento político.Discurso linha duraAlém disso, embora a esquerda tenha perdido votos em vários países da Europa, isso se deve, em grande parte, a um aumento da abstenção — e não a uma migração direta para partidos reacionários. O segundo equívoco é a crença de que eleitores atraídos pela retórica da extrema direita passarão a votar na esquerda, desde que ela adote um discurso linha-dura. A história e os dados mostram o contrário: nesses casos, o eleitorado tende a preferir o original à cópia.Enquanto isso, o Reform UK avança. Pesquisas recentes mostram o movimento de Farage empatado — ou mesmo à frente — dos conservadores, atualmente em colapso político e rendidos ideologicamente. As projeções mais recentes já indicam o Reform UK como possível principal força de oposição, superando os conservadores em intenções de voto.Nas eleições locais de 2025, o Reform UK conquistou centenas de cadeiras, passou a controlar dez conselhos locais — equivalentes a prefeituras — e venceu duas eleições regionais. Em certos cenários, já se vislumbra até a possibilidade de maioria parlamentar nas próximas eleições gerais. Não se trata de um crescimento pontual, mas de uma ameaça concreta ao bipartidarismo que estruturou a política britânica por décadas.Diante disso, a resposta do Labour soa não apenas ineficaz, mas politicamente míope: ao adotar a linguagem da extrema direita, o partido não a enfraquece — ao contrário, reforça suas premissas e amplia seu alcance. E o mais grave: o ...
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  • Eventuais sanções de Trump contra o ministro Alexandre de Moraes teriam impacto limitado
    Jun 2 2025

    Em fevereiro de 2025, a Trump Media & Technology Group e a plataforma Rumble Inc. ingressaram com uma ação judicial na Corte Distrital dos Estados Unidos para o Distrito Médio da Flórida contra o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) do Brasil, Alexandre de Moraes.

    Thiago de Aragão, analista político

    A alegação central era de que as ordens emitidas por Moraes, que determinavam a suspensão de contas na plataforma Rumble, violavam a Primeira Emenda da Constituição americana, que protege a liberdade de expressão. As empresas buscavam uma declaração de que tais ordens eram inexequíveis nos Estados Unidos.

    A ação foi rejeitada pela corte americana com base na falta de jurisdição e na ausência de notificação adequada, conforme exigido pela Lei de Imunidades Soberanas Estrangeiras (FSIA). Segundo a FSIA, Estados estrangeiros e seus representantes gozam de imunidade de jurisdição nos tribunais dos EUA, salvo exceções específicas, como atividades comerciais ou violações de direitos humanos.

    Além disso, o Departamento de Justiça dos EUA comunicou ao ministro Moraes que suas ordens não eram executáveis em território americano, ressaltando que qualquer tentativa de impor decisões judiciais estrangeiras no país deve seguir os procedimentos legais internacionais apropriados.

    Tensão entre Brasil e EUA

    A situação gerou tensões diplomáticas entre Brasil e Estados Unidos. O governo brasileiro, por meio do Ministério das Relações Exteriores, expressou preocupação com a distorção das decisões judiciais brasileiras e reafirmou a soberania nacional.

    Paralelamente, o secretário de Estado dos EUA, Marco Rubio, indicou que sanções contra Moraes estavam sob consideração, com base na Lei Magnitsky, que permite sanções a indivíduos estrangeiros envolvidos em corrupção ou violações de direitos humanos.

    A recente iniciativa do governo Trump de considerar sanções contra o ministro Alexandre de Moraes, sob a alegação de censura a plataformas digitais americanas, representa um marco delicado nas relações diplomáticas entre Brasil e Estados Unidos.

    Essa medida, impulsionada por pressões de aliados de Jair Bolsonaro, como seu filho Eduardo Bolsonaro, e por figuras influentes como Elon Musk, sinaliza uma tentativa de intervenção direta em assuntos internos do Brasil, especialmente no que tange à atuação do Supremo Tribunal Federal em defesa da ordem democrática.

    A possibilidade de sanções, incluindo restrições de visto e congelamento de bens, conforme previsto na Lei Magnitsky, não apenas desafia a soberania brasileira, mas também ameaça desestabilizar uma parceria histórica entre as duas maiores economias do Hemisfério Ocidental.

    Especialistas alertam que tal ação pode desencadear uma crise diplomática sem precedentes, com o Brasil buscando apoio em outras esferas internacionais e reavaliando suas alianças estratégicas.

    Recursos significativos

    Embora a retórica do governo Trump sugira uma postura firme contra o ministro Alexandre de Moraes, na prática, essa questão não figura entre as prioridades estratégicas da administração. Com desafios mais prementes, como as tensões comerciais com a China e a situação na Ucrânia, é improvável que o governo dedique recursos significativos para impor sanções a um juiz estrangeiro.

    Além disso, eventuais sanções, como restrições de visto ou bloqueio de ativos nos EUA, teriam impacto limitado na atuação de Moraes, que concentra suas atividades no Brasil e não depende de ativos ou viagens aos Estados Unidos.

    Portanto, embora a ameaça de sanções possa gerar repercussões políticas e midiáticas, seus efeitos práticos sobre o ministro e sobre as relações bilaterais tendem a ser mais simbólicos do que substanciais.

    Este caso destaca os desafios legais e diplomáticos em um mundo interconectado, onde ações de autoridades nacionais podem ter repercussões globais. A tentativa de aplicar princípios constitucionais americanos a decisões judiciais brasileiras evidencia as complexidades de conciliar diferentes sistemas jurídicos e valores democráticos.

    É essencial que os países desenvolvam mecanismos de cooperação jurídica internacional que respeitem as soberanias nacionais e os princípios democráticos, evitando a politização de disputas judiciais e promovendo a estabilidade das relações internacionais.

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  • Islamofobia à francesa: racismo sistêmico se traveste de 'neutralidade' para excluir muçulmanos
    May 27 2025
    Um relatório oficial sem provas reativou, na França, a figura do muçulmano como "inimigo interno". A islamofobia, longe de ser um desvio, tornou-se linguagem institucional — e disfarça, sob a ideia de laicidade, um racismo sistêmico. Thomás Zicman de Barros, analista políticoNa França de hoje, o racismo nem sempre aparece de forma explícita. Em vez de falar diretamente sobre raça, ele se disfarça de preocupação com a religião — quase sempre, com o Islã.A figura do muçulmano acaba reunindo, num só alvo, preconceitos franceses ligados tanto à cor da pele, quanto à fé. No Brasil, os debates sobre racismo e sobre a presença da religião na política ganharam força nos últimos anos, mas costumam seguir caminhos separados.Na França, ao contrário, esses temas se misturam. Em nome de uma suposta neutralidade do Estado — o chamado princípio da laicidade —, a exclusão de certos grupos se torna não só tolerada, mas legitimada.Essa lógica ficou escancarada mais uma vez na última semana, com a publicação de um relatório oficial do Ministério do Interior francês que denuncia — sem apresentar nenhuma evidência concreta — uma suposta tentativa de infiltração da Irmandade Muçulmana nas instituições republicanas.A Irmandade é um movimento islâmico fundado no Egito, que defende a organização da sociedade com base em princípios religiosos. Já foi uma força política relevante em alguns países, mas hoje está em franca decadência. Como em qualquer sociedade democrática, grupos fanatizados — de qualquer orientação ideológica ou religiosa — devem ser acompanhados com atenção dentro dos territórios.“Ameaça” internaNo entanto, os dados disponíveis indicam que apenas uma parcela ínfima dos muçulmanos na França se identifica com posições dessa natureza. Mesmo assim, o relatório francês, intitulado “A Irmandade Muçulmana e o islamismo político na França”, mistura suspeitas vagas e insinuações, sugerindo que qualquer cidadão muçulmano poderia ser um agente infiltrado do fanatismo religioso.A rigor, não deveria passar de um panfleto com teorias conspiratórias típicas da extrema direita. Apesar disso, o relatório foi recebido com estardalhaço pela imprensa francesa, pelo próprio governo, e pelo presidente Emmanuel Macron, que decidiu convocar o Conselho de Defesa — uma instância reservada normalmente a discutir guerras e ameaças externas — para tratar da “ameaça” interna.Racismo instrumentalizadoChama atenção o fato de que, hoje em dia, e cada vez mais, o muçulmano ocupa na França o papel que cabia ao judeu há 100, 120 anos. São grupos discriminados, marginalizados, mas aos quais se atribui superpoderes. O "inimigo interno", insidioso, invisível.O muçulmano hoje, como o judeu no passado, estaria por todos os lados, e controlaria — ou tentaria controlar — o país na surdina.É importante lembrar que a islamofobia não é exclusividade da extrema direita. Ela se faz presente por todo o espectro político francês — na direita, no centro e até mesmo em parte da esquerda dita “republicana” — tornando-se compatível com os racistas históricos e até ajudando a normalizá-los.E não se trata aqui de uma mera tática eleitoral para conquistar um eleitorado racista ou para desviar o foco de problemas reais — embora também seja tudo isso —, mas do reflexo de uma hegemonia cultural profundamente enraizada. A islamofobia impregnou alguns dos princípios fundamentais da cultura política francesa.Leia tambémPichações islamofóbicas em centro muçulmano chocam a França dois dias antes do RamadãEla colonizou noções centrais do republicanismo francês, a começar por seu pilar fundante: a laicidade, o princípio da separação entre Estado e religião. A forma como essas ideias são entendidas hoje reproduz em seu cerne a islamofobia. Por isso, o racismo que ela perpetua é sistêmico.Vale lembrar como o princípio da laicidade se instalou como fundamento da república na França. Faz exatos 120 anos, na esteira do caso que criou o antissemitismo moderno: o chamado affaire Dreyfus. A ideia, na época, era proteger o cidadão contra o Estado que quisesse impor uma religião ou perseguir minorias. Uma aspiração mais do que legítima.Ocorre que, na segunda metade do século passado, com a chegada de povos não brancos vindos das antigas colônias à França metropolitana, o que deveria ser uma garantia de liberdade para todos se converteu, na prática, em instrumento de exclusão. Ao invés de proteger o cidadão contra o Estado, a laicidade passou a ser usada pelo Estado para policiar os modos de vida de certos cidadãos.Cerco aos muçulmanosEsse processo se intensificou nas últimas duas décadas, quando o cerco aos muçulmanos se fechou com ainda mais força: leis que proíbem o uso do véu islâmico em escolas públicas, em universidades e, mais recentemente, em competições esportivas; tentativas...
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  • A nova guerra fria tecnológica: Estados Unidos, China e o papel estratégico de Taiwan
    May 19 2025

    Quando a Taiwan Semiconductor Manufacturing Company (TSMC) iniciou a construção de sua fábrica no Arizona, muitos viram isso como um passo ousado para recuperar a liderança dos Estados Unidos na fabricação de semicondutores. No entanto, à medida que o projeto avança, torna-se evidente que estabelecer a produção de chips em solo americano é mais complexo do que simplesmente erguer instalações e ligar máquinas.

    Thiago de Aragão, analista político

    A iniciativa da TSMC em Phoenix foi concebida como parte fundamental do CHIPS and Science Act — um esforço federal de US$ 280 bilhões para revitalizar a fabricação de chips nos Estados Unidos. Apesar dos subsídios bilionários e do entusiasmo político, o projeto enfrenta atrasos, conflitos culturais e disputas trabalhistas.

    Originalmente prevista para iniciar a produção em 2024, a fábrica no Arizona teve sua operação adiada para 2025, alegando escassez de mão de obra qualificada e a obstáculos regulatórios. Os EUA carecem da base sólida de engenheiros e técnicos em semicondutores que Taiwan desenvolveu ao longo de décadas. A TSMC precisou trazer trabalhadores de Taiwan para treinar a equipe americana, medida que gerou tensões com sindicatos locais e questionamentos sobre a viabilidade a longo prazo do projeto.

    Além da lacuna de habilidades, a empreitada da TSMC no Arizona expôs diferenças marcantes na cultura de trabalho. Relatos indicam que funcionários americanos foram submetidos a padrões mais rigorosos do que seus colegas taiwaneses, resultando em alegações de discriminação e ações judiciais. O estilo de gestão da empresa, descrito por alguns como “severo” e “exigente”, conflita com as expectativas laborais americanas, complicando ainda mais a implementação do projeto.

    Produzir chips nos EUA não é apenas um desafio logístico — é também econômico. A instalação da TSMC no Arizona registrou perdas significativas, com um déficit de aproximadamente US$ 441 milhões em 2024. Embora os custos trabalhistas contribuam, a maioria das despesas decorre de equipamentos e infraestrutura. Mesmo com automação e escalabilidade, estima-se que os chips fabricados nos EUA sejam cerca de 10% mais caros do que os produzidos em Taiwan.

    Apesar dos contratempos, há sinais de progresso. A fábrica da TSMC no Arizona alcançou um rendimento 4% superior ao de suas instalações em Taiwan, um marco significativo que sugere o potencial competitivo da produção de chips nos EUA. Esse sucesso pode abrir caminho para novos investimentos e expansões, desde que os problemas subjacentes sejam resolvidos.

    A experiência da TSMC no Arizona destaca as complexidades de repatriar a fabricação de semicondutores. Não se trata apenas de construir fábricas; é necessário desenvolver ecossistemas — força de trabalho, cadeias de suprimentos e culturas — que sustentem a produção de alta tecnologia. Sem um esforço coordenado para formar talentos domésticos e reconciliar diferenças culturais, o sonho de independência americana na produção de chips pode permanecer inalcançável.

    À medida que os EUA enfrentam esse terreno desafiador, é imperativo reconhecer que trazer a fabricação de chips para casa é uma maratona, não uma corrida. O caminho adiante exigirá paciência, investimento e disposição para se adaptar. Só então o país poderá transformar o mito do silício em uma realidade tangível.

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