• 3/3: Destronar o senhor da República da Guiné ?
    Sep 19 2024
    Há cinquenta anos, a 20 de Janeiro de 1973, era assassinado o líder nacionalista Amílcar Cabral, em frente à sua casa baleado por militantes do PAIGC. Este assassínio, porém, não dita o fim da História: nos meses que seguiram ao funeral de Cabral, os serviços franceses e portugueses tentam criar um plano para derrubar Ahmed Sékou Touré. A operação fica conhecida como "Safira". Porém, a Revolução dos Cravos em Portugal, impede que este plano fosse lançado. Para assinalar o dia 1 de Fevereiro de 1973, dia do funeral nacional de Amílcar Cabral, Ahmed Sékou Touré decidiu, como fazia por vezes, redigir um poema. “Onde estão eles ? / Os grandes soldados do Progresso, / Os gigantes da grande luta / Gerados pela coragem consciente / E gerando a consciência da coragem?". O texto intitulado "Onde eles estão?". É dedicado “a todos os mártires do colonialismo”. "Cabral e Mondlane / N'Krumah e Lumumba / Em nós e depois de nós / Sempre honrados, viverão / A Revolução chegará aos céus!"[1]Após o assassínio, os relatórios dos serviços portugueses dão conta de que o dirigente guineense tinha reforçado a sua posição no PAIGC. Nos meses que seguiram ao assassínio do líder independentista guineense e cabo-verdiano, surge uma nova operação. Desta vez, a operação visa derrubar o regime de Sékou Touré e fica conhecida como "Safira" .A operação é tornada pública meses depois de ter sido abandonada, mas ganhou mediatismo na imprensa portuguesa: O jornal Expresso, na sua edição de 24 de Janeiro de 1976, publicou relatórios internos da DGS, entidade que sucedeu em 1969, à PIDE , a polícia política do regime ditatorial português.“Operação 'Safira' tenta ressuscitar Operação "Mar Verde" [2], escreve o jornal, referindo-se ao ataque abortado de Novembro de 1970 em Conacri. O novo plano prevê um jogo de manipulação complexo que visa fomentar divisões dentro do PAIGC, na esperança de enfraquecer o Presidente guineense Ahmed Sekou Touré e permitir uma nova operação dos opositores guineenses exilados da FLNG (Frente de Libertação Nacional da Guiné [Conacri]).Uma aliança entre contestatários do PAIGC e a oposição guineense em exílioPrimeira etapa da operação: exacerbar as tensões no seio do PAIGC, quer se trate das clivagens entre os mulatos cabo-verdianos e os negros da Guiné-Bissau ou a existência de duas tendências ideológicas. Uma delas é “comunista, ou pró Sékou Touré” e, do outro, “a dos pró ocidentais ou anti- Sékou Touré”, será esta “facção dissidente que pretende levar a efeito um golpe de Estado dentro do PAIGC”.Nos relatórios da DGS, revelado pelo “Expresso”, os serviços de informações portugueses afirmaram que um grupo da Guiné-Bissau, da vertente africana, “conscientes de que o PAIGC é um instrumento dos cabo-verdianos manobrado por Sékou Touré”.O “Expresso” também revelou os relatórios das missões de dois agentes infiltrados no seio do PAIGC. Um deles, com o nome de código Padre, encontrou-se mesmo com Samba Djaló, responsável da segurança do PAIGC pela região Norte, a 23 de Agosto 1973. O encontro aconteceu em território senegalês onde Djaló estava baseado. Este membro do PAIGC parece manipulável. Segundo o jornal, ele terá dito ao agente que trabalhava para Portugal que Aristides Pereira, o novo chefe do PAIGC, "não está à altura do seu cargo, não passando de um fantoche manobrado por Sékou Touré que é quem toma todas as decisões importantes ”.Segunda etapa da operação: os opositores da FLNG (Frente Nacional da Libertação da Guiné [Conacri]), que tinham sido integrados na operação Mar Verde, devem agora contactar os dissidentes do PAIGC tendo em vista uma acção comum com Conacri prevista para “o fim de Junho, início de Julho" [de 1974, NdR]. O Coronel Thierno Diallo, um dos chefes desta oposição no exílio, é o primeiro apontado para suceder a Sékou Touré.Um plano elaborado "com franceses do SDECE"Ficamos a saber no semanário Expresso que se trata de um plano cujas “grandes linhas de acção" teriam sido traçadas com os franceses da "SDECE” [Documentação externa e serviço de contra-espionagem, Nota da Redacção]. Nos referidos documentos encontram-se relatórios da DGS de Bissau, que chegaram a Lisboa a 5 de Novembro de 1973, foram revistos para depois serem enviados para Paris. Os documentos descrevem os pormenores para preparar a operação.Os documentos eram dirigidos a "um tal Koch da SDECE e ao coronel Lacase, director dos serviços de informação do mesmo organismo". Lacase? Sem dúvida, o coronel Jeannou Lacaze. Koch? Durante muito tempo, esse foi a alcunha de Jacques Foccart.Sinal de que existiam ligações internacionais nesta operação, o plano beneficia, segundo os documentos do Expresso, de investimentos financeiros "brasileiros e europeus", recebendo ainda "ajuda de ...
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  • 2/3: As ramificações de um complot
    Sep 19 2024
    Há mais de 50 anos, o líder separatista guineense de ascendência cabo-verdiana Amílcar Cabral foi assassinado em Conacri, então base de retaguarda do seu movimento, o PAIGC. De imediato, o poder guineense apontou o dedo ao “imperialismo” que “acabava de cometer um dos crimes mais hediondos e ignobéis na República da Guiné”. O que sabe, cinquenta anos depois, destes autores do complot da operação? É o que descobrimos neste segundo episódio desta série. Morte, conspiração, traição. Durante as décadas de 1960 e de 1970, os líderes africanos progressistas ou revolucionários vivem a olhar constantemente para o fundo do espelho, para os fantasmas da insegurança. Lumumba, Um Nyobé, Moumié foram assassinados. Nkrumah foi derrubado. O moçambicano Eduardo Mondlane morreu numa explosão com uma carta armadilhada.A 13 de Maio de 1972, enquanto Conacri presta homenagem a Kwame Nkrumah - o pai da independência do Gana que acaba de morrer num hospital em Bucareste - Amilcar Cabral declarava: "Que ninguém nos venha dizer...", afirma em francês, "...que Nkrumah morreu com um cancro na garganta ou de outra doença. Não, Nkrumah foi morto pelo cancro da traição que devemos erradicar, cujas raízes devemos erradicar de África se realmente quisermos acabar, definitivamente, com a dominação imperialista neste continente".O cancro da traição corrói o PAIGC, o movimento de independência da Guiné-Bissau, há algum tempo. “A partir de meados da década de 1960”, escreve um dos biógrafos de Amílcar Cabral, António Tomás, “os elementos do partido começam a ver Cabral como um problema, como fica evidenciado pelo grande número de conspirações contra ele”. [1] Em 1967, explica este autor, um julgamento condenou à pena de morte os activistas Honório Sanches Vaz e Miguel Embaná, acusados ​​de terem tentado matar Cabral.Em 1969, um militante apelidado de "Jonjon" é detido no secretariado quando se preparava para atirar uma granada contra o líder independentista. Um ano depois, uma operação denominada “Amílcar Cabral” foi lançada pela polícia secreta do Estado Novo, do regime do ditador português António de Oliveira Salazar [PIDE, Polícia Internacional e de Defesa do Estado] com base num cabo-verdiano chamado "Lachol", residente em Dacar. “Estes planos ficaram marcados pelo amadorismo, escreve António Tomás, e não preocupavam Cabral".No entanto, a ameaça está bem presente. Em Março de 1972, Amilcar Cabral redigiu um memorando no qual explica que os portugueses conseguiram infiltrar-se no PAIGC para eliminar os seus principais dirigentes. Ele detalha os passos desse plano: primeiro ,a infiltração de agentes africanos vindos de Bissau que dirão querer juntar-se à luta. Alguns deles teriam saído, recentemente, de prisão onde terão sido treinados pela PIDE com técnicas para desestabilizar a organização. Depois de integrarem o movimento, iriam tentar dividi-lo, criariam uma direcção paralela para se tentar impor para destruir a autoridade de Cabral, permitindo a sua saída ou eliminação física.Cinquenta anos depois, os arquivos da PIDE e da sua sucessora, a Direcção-Geral de Segurança (DGS, nota do editor) confirmam que o PAIGC conseguiu, efectivamente, infiltrar-se com agentes ligados a Lisboa. O jornalista de investigação José Pédro Castanheira cita relatos transmitidos por três destes agentes aos serviços portugueses e ilustra a proximidade de um deles a Cabral [2].Investigação documental de Bruno CrimiNo entanto, será possível dizer-se que os serviços portugueses organizaram os acontecimentos de Janeiro de 1973? Dois anos depois do assassínio, o jornalista Bruno Crimi assinou, nas colunas da revista Jeune Afrique, um dos artigos mais completos (nessa altura) sobre o caso. Bruno Crimi diz ter conseguido ter acesso, depois da Revolução dos Cravos de Abril de 1974, “a documentos guardados zelosamente nos arquivos da PIDE-DGS, na rua António Maria Cardoso, na capital”. Descreve com rigor, citando nomes e datas, o papel desempenhado pela polícia política portuguesa na morte de Cabral. O seu relato, que a RFI pôde confirmar tendo acesso a novas fontes, avança com dados precisos que merecem ser resumidos.Segundo Bruno Crimi, o destino de Cabral estava traçado no início de 1972. O primeiro-ministro português, Marcelo Caetano, precisava de um impulso para contra-balançar as vitórias dos independentistas nas colónias portuguesas em África. Marcelo Caetado recorre a determinados serviços para o efeito. Um homem, explica Bruno Crimi, ocupa o centro das atenções: Barbieri Cardoso, que depois de ter sido vice-director da PIDE se tornou, em meados dos anos 60, o chefe dos serviços de informação dos "territórios ultramarinos". Foi ele quem organizou o rapto e depois o assassínio do general Humberto Delgado, opositor ao regime de Salazar. O caso Cabral foi-lhe ...
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  • 1/3: As lutas das duas "Guinés" entrelaçadas
    Sep 19 2024
    Conacri foi palco em Janeiro de 1973 do assassínio de Amílcar Cabral, a capital da República da Guiné onde o PAIGC se instalara, para, de forma mais eficaz, luta contra o colonialismo português, do outro lado da fronteira. O relato do ocorrido há mais de meio século aqui, num episódio marcado pelas redes tecidas entre as duas "Guiné" vizinhas. Porque no início dos anos 1970, as lutas das duas "Guinés" estavam intimamente entrelaçadas. A noite de 20 de Janeiro de 1973Após uma tarde de trabalho, Amílcar Cabral deslocou-se à residência do embaixador polaco em Conacri, nesse sábado, dia 20 de Janeiro de 1973. Tadeusz Matisiak recebeu-o ao lado de vários membros do corpo diplomático. “Após o jantar, num ambiente muito descontraído, os convidados começam a dançar. Amílcar estava sorridente, descontraído, atento a todos”, lembra num livro sobre Cabral uma das pessoas presentes nessa noite, Oscar Oramas Oliva, então embaixador cubano na Guiné.“Ele não era muito de recepções", lembra ao microfone da RFI a viúva de Amílcar Cabral, Ana Maria…". Mas nesse dia, ele disse-me: "Excepcionalmente vamos, até porque nunca recebemos ajuda da Polónia. Vamos lá, portanto, lembrar-lhes de que também precisamos de solidariedade deles". Então, fomos. "E vi que ele nunca mais queria sair. Como se tivesse o pressentimento de que era o último dia da vida dele. E então falava, falava, falava com todos". Os convidados foram-se embora a horas tardias.O carro de Amilcar Cabral chega à sua casa no bairro de La Minière, em Conacri. O líder independentista está sozinho com sua esposa. Quando homens armados se dirigem a eles. À sua frente, Inocêncio Cani, veterano do PAIGC, Partido Africano para a Independência da Guiné-Bissau e Cabo Verde (PAIGC), movimento independentista liderado por Amilcar Cabral. Inocêncio Cani é um antigo líder das forças navais do movimento.“Eles vieram tentar amarrar o Cabral", prossegue Ana Maria Cabral, "Ele disse-lhes: Não! Não me amarrem". Começaram a conversar. "Se há problemas, vamos ao secretariado, vamo-nos sentar e vamos discutir dos problemas ! Mas amarrar não, não vamos cometer o mesmo erro que os colonialistas ! Amarrar as pessoas é uma falta de respeito, uma humilhação para com um ser humano. Amarram-se galinhas, amarram-se bichos, e não seres humanos! É uma das principais razões da nossa luta de libertação!”.“Ficaram naquela discussão e eu estava perplexa, conta Ana Maria Cabral, aquilo nunca mais acabava e eu não estava a perceber nada daquilo ". A certa altura, ele disse: "Eu prefiro que vocês me matem a ser amarrado!" E eis que, Inocêncio Cani aproveitou a oportunidade e disparou contra Amílcar. O líder da independência ficou ferido por um primeiro tiro e foi, depois, morto por uma rajada de armas automáticas.O assassínio frente a SékouUma vez que a residência cubana ficava situada a apenas 600 metros do secretariado do PAIGC e da residência de Cabral, o embaixador Oscar Oramas Oliva ouviu os disparos. “Imediatamente”, diz ele, “o telefone toca." É Otto Schacht, o responsável de segurança do PAIGC: "Senhor embaixador, acabam de disparar contra Amílcar, venha ao secretariado, ele está muito mal." Chegado ao local, o embaixador encontra Cabral estendido no chão numa poça de sangue. O embaixador considera necessário avisar o presidente Sékou Touré e dirige-se até à casa de Djibo Bakary, o responsável político nigeriano anti-colonialista, que também vive exilado em Conacri. Bakary vive perto da cena do crime e consegue contactar, por telefone, o Presidente guineense [1]. No relato que o diplomata cubano faz nessa conversa, parece dar a notícia ao chefe de Estado. Outras fontes apontam que Sékou já sabia do que tinha acontecido.Os autores do complot, por outro lado, perseguem com dois outros objectivos: prendem Aristides Pereira, o número dois do PAIGC, na sede do partido... e levam-no para o porto, para aí, verosimilmente, embarcar para Bissau. Uma parte da equipa vai à prisão do PAIGC em Conacri, conhecida como “A Montanha”. São libertados dois cúmplices: Mamadou "Momo" Touré e Aristides Barbosa. Durante a noite, os autores do complot detiveram, ainda, vários dirigentes do PAIGC no regresso à "Escola Piloto" do movimento, a Escola Piloto; onde se deslocavam para assistir a uma palestra de Joaquim Chissano, um dos dirigentes independentistas da Frelimo moçambicana.Os assassinos de Cabral pedem para falar com o presidente Sékou Touré e são recebidos durante a noite. O embaixador argelino está presente. O embaixador cubano também. Grande tensão: “Afirmam que a direcção do partido é controlada pelos cabo-verdianos em detrimento dos guineenses que lutam de armas na mão contra os portugueses", escreve o diplomata cubano no seu livro sobre Cabral. "Afirmam ter apresentado este problema em vários momento a Amílcar, que não só nunca...
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